08/07/2008

Hojas y Flores


O destino: Ezeiza.
Ao invés, pousamos em Rosário.
Fomos de ônibus, não enxergando a Argentina, por 310 km, por conta da neblina.
Mas, chegamos.
Buenos Aires, Buenos Aires.... Amanhecendo com suas imensamente largas avenidas e majestosos parques vazios, mas com aquele cheirinho de limpo e de frescor das manhãs em todos os lugares.
Pallermo Viejo. Agora, dizem alguns, chama-se Pallermo Soho; para contrastar com uma tal de Pallermo Hollywood, que não vi e que os habitantes mais velhos se arrenegam de reconhecer.
Pallermo Viejo, portanto, e porteño.
Hostel e não hotel.Há mais conforto em hotéis, é claro, mas mais solidão também. Mas para mim, para quem um dos fascínios da vida é conhecer outras gentes em outras terras, além da informalidade dos jovens de todo mundo que são maioria nestes lugares, é incrivelmente mais barato, já que a Josy e a mim não incomoda arrumar quarto e cama e cuidar de nossas algibeiras.
Deixei-a a dormir, às cinco da manhã, com gripe já no primeiro dia (depois melhorou e sarou), e fui ver a cidade continuar a amanhecer.
A primeira coisa que se sente é a suave decadência da cidade. Já disse em outra crônica que gosto das coisas usadas, aquelas que exibem o uso das pessoas e a passagem do tempo.
Arquitetura antiga, terraços e mais terraços em toda parte, em pequenos prédios e casas, alguns com plantas, outros com esteiras de praia preservando a privacidade dos habitantes.
Não é minha primeira vez nesta doce cidade que sempre desmentiu, para mim ao menos, o mito da arrogância dos argentinos. Balela. Peta. São gentis ao extremo, delicados e atenciosos, esses nossos amigos del sur.
Em todas as circunstâncias. Sempre achei que a civilização começa nos pequenos gestos cotidianos, no ‘com licença/permiso’ e no ‘desculpe-me’ ao mais leve esbarrão involuntário.
Estamos cambialmente em vantagem neste momento. Come-se e bebe-se do bom e do melhor a preços muito moderados, para dizer o mínimo.
Devo aqui mencionar o Club Eros, com bife de chorizo, papas fritas e vinho por incríveis 35 reais para duas pessoas, ali na esquina da Uriarte com a Honduras, para não mencionar a atenção e simpatia do garçom Anwar.
Quando era menino dizia-se que a Argentina tinha duas coisas que faltavam ao Brasil: garçons e goleiros. Acho que resolvemos o problema dos goleiros, estão aí o Ceni e o Marcos que não me deixam mentir. Mas perdemos de lavada em matéria de garçons.
É inverno e não faltam folhas secas pelas calçadas.
Hojas Secas en los Paseos y Flores en los Píes.
Explico.
As folhas secas estalavam sob os pés ao andar e as flores nos pés me ocorreu ao olhar um lindo par de tênis floridos comprados pela Josy, e que resolvi expandir para abarcar o sentimento de leveza nos passos e a pura felicidade que nos tomou nestes dias de flanar por esta cidade plana, linda e cheia de histórias secretas a nos sussurrar nos ouvidos atentos.
Viajar é andar e andar, e enfiar o nariz curioso nos mais variados lugares. Desde a loja ‘Objetos Encontrados’ até a ‘Boutique del Libro’ , talvez a melhor livraria de Buenos Aires, de propriedade de Fernando e bem atendida por atenciosas vendedoras, em especial a Sol (Soledad) que não só me brindou com sua graciosa figura e desvelada atenção, como me levou a conhecer as novas bandas que tocam na noite de Buenos Aires, pelos cantos secretos de San Telmo.
Recomendo uma chamada ‘Plasma’, na Calle Piedras.
É verdade que a El Atheneo continua a ser o palácio de livros que sempre foi com tudo o que se queira e mais um pouco. Mas falta-lhe a modernidade e a informalidade da Boutique.
Consegui achar CDs difíceis por aqui, desde Jorge Cafrune até Bola de Nieve, passando por Troilo e Pugliese, e um precioso dicionário de lunfardo que torna os tangos compreensíveis a nós que partilhamos com os portugueses e uns tantos outros gatos pingados, este código secreto que é a língua portuguesa.
Relendo acima, vi que fui de lá para cá e de aqui para ali, passeando pelas minhas impressões. Um pouco como a viagem; digamos que esta é uma crônica/diário de bordo.
Mas que fez bem a nossa alma, ah, lá isso fez, e como.
Para não mencionar las flores en los píes que nos deixaram o espírito leve e um sorriso pairando feliz pelo rosto.

15/02/2008

Minialetos


Sempre fui irresistivelmente atraído pelas palavras bem urdidas, e pelas diversas formas que seu encadeamento pode tomar dentro de uma mesma língua. Mais, dentro de uma mesma cidade, e digo, até dentro de um mesmo espaço físico.
São como dialetos para mim. Minialetos talvez fosse um bom nome.
Vou começar com um exemplo.
Peguemos a frase:
“Os homens não entendem as mulheres”.
Para uma pessoa de pouca instrução, em um boteco, digamos, poderia ser expressa como um suposto dito nordestino:
“Nem o diabo entende mulher, se entendesse não teria chifre”.
Para uma pessoa de instrução média, em um barzinho da Vila Madalena, vá lá, poderia ser dita como um clichê:
“Os homens são PC e as mulheres são Mac.”, parodiando o título de um famoso livro sobre o assunto.
Já para uma pessoa de nível universitário, freqüentador da Casa do Saber, poderia ser assim:
“Homens e mulheres, devido a diferenças que vão desde a anatomia até a genética, desde os meios culturais em que foram criados até o papel social designado a cada um por séculos de costumes, podem ter diferenças que, em alguns assuntos, os tornam incompreensíveis uns para outros.”
Há um inegável machismo na primeira frase, uma inversão na segunda (para aqueles que sabem que Mac é melhor que PC, naturalmente), e uma terceira frase em cima do muro. Tucanês, diria o José Simão. Mas o machismo visível na primeira frase pode ser visto mais como uma forma de humor cru; a inversão da segunda como politicamente correta e a terceira, bem a terceira não cheira nem fede, é claro, além de ser a mais longa das três.
Mas são apenas exemplos do que chamei de minialetos.
Com alguma atenção e treino é possível apreender, até com alguma facilidade, a se expressar em cada um deles por conversas inteiras. É como aprender outra língua, só que muito mais fácil.
A vantagem deste aprendizado é a melhora da comunicação com as pessoas independente de sua origem, instrução ou condição social.
Afora que é uma delícia para quem gosta de palavras como eu.
Mas, em cidades grandes como São Paulo ou Rio, além dessas variáveis educacionais e socioeconômicas, existem também as variáveis de cultura local. Palavras que são de uso corrente em um bairro e praticamente desconhecidas em outro, ou então familiares para uma ‘tribo’ e com sentido totalmente diverso em outra.
Vejam bem, não estou nem falando de jargões profissionais, que também estas linguagens podem ser incompreensíveis para pessoas de fora do ramo específico de atuação a que se referem.
Estou falando de linguagens pedestres, cotidianas.
De certa forma, o talento para falar de modos diferentes já está embutido em todos nós.
Por exemplo, sabemos perfeitamente quando usar ou não palavrões, quando é para sermos mais ou menos formais; sabemos que o não permitido à mesa é perfeitamente aceitável em uma roda de amigos, e por aí vai.
Então me parece que é apenas uma questão de tornar essa habilidade natural da cultura – pois que perpassa todos os segmentos sociais e econômicos – mais abrangente e inclusiva, até para melhor curtir a cidade e seus diversos sabores lingüísticos e culturais.
Menas..., dirão alguns.
Mas por que não, catsu?..., digo eu.

03/02/2008

Fila Indiana


Era seu caminho.
Parava o carro na zona azul na primeira travessa depois do edifício para onde se dirigia.
Comprava os talões na banca de jornal na esquina seguinte e até já tinha estabelecido uma camaradagem com o rapaz da banca, o suficiente para uns dedos de prosa caso chegasse adiantado.
Passava pelas lojas da rua, pelo bar da esquina e descia fumando um último cigarro já que fumar não era bem visto pela sua analista.
Pois é. Era para sua sessão de psicanálise que se dirigia.
Depois da identificação pela câmera da portaria, subia até o sétimo andar, tocava a campainha e entrava.
Seu horário era às nove horas da manhã.
Um belo dia – gostava desse clichê em especial por dois motivos: um que um seu professor de natação sempre lhe dizia que “todo dia é bom dia, certo?”, e porque tinha uma empregada para quem todo dia era de fato um belo dia.
Mas como eu ia dizendo: Um belo dia, por circunstâncias de agenda, teve seu horário antecipado para as oito horas da manhã.
É importante contar o motivo pelo qual fazia análise: Ele era um dependente químico. E de várias substâncias químicas: tabaco, álcool, maconha, café e umas tantas outras menos populares.
Acontece que ao chegar para sua sessão das oito horas, deparou-se com um cordão de pessoas serpenteando pela calçada da avenida da esquina para baixo.
As pessoas estavam em fila indiana rente às paredes, umas de pé, outras sentadas no chão ou num degrau, outras ainda, deitadas dormindo.
Todos sérios, quietos e diferentes entre si. Aquele retrato conhecido da pobreza urbana brasileira: maltrapilhos ou de short e sandália, um ou outro travesti sem produção, muitos alcoólatras inchados. Idade média ao redor dos quarenta anos.
Ficou curioso, mas de imediato não viu nenhum motivo visível para aquilo, provavelmente porque estava em cima da hora e não teve tempo para investigar.
Na saída, uma surpresa: não havia mais fila e nem mais ninguém a vista. Onde teriam ido? Seguiu avenida acima olhando para as casas até descobrir a resposta em uma pequena porta com uma plaquinha da prefeitura identificando o lugar: Centro de Convivência.
Não resistiu, é claro, e entrou. Era um lugar que servia café da manhã – um copo de café com leite e um pãozinho francês com margarina – tinha os jornais do dia (vários exemplares), uma televisão pendurada na parede com os programas matinais e algumas mesas onde se jogava dominó.
Lá dentro as pessoas conversavam, sem falar muito alto nem nada. O ambiente poderia até ser descrito como normal, não fosse uma ou outra pessoa isolada num canto murmurando consigo mesma.
Nele, sequer repararam, embora estive bem melhor trajado do que todos ali.
Um olhar daqui e dali e mais nada.
Deu uma volta pelo lugar e saiu dali pensativo.
Qual das duas seria a melhor solução para pessoas com problemas: a sua sessão de análise de alfaiate, cara, sofisticada, feita sob medida que freqüentava, ou aquela experiência comunal, sendo igual entre iguais, trocando idéias, comparando os problemas e as soluções que cada um encontrava para seus males?
Antes de pegar seu carro na transversal, parou no bar e pediu uma bebida.
O dono do bar, um português cauteloso, pediu-lhe delicadamente que fosse discreto e bebesse mais para o fundo do estabelecimento, pois não queria servir a ‘esses gajos aí, que só fazem dar problemas’.
Ele ainda não achou uma resposta satisfatória para sua dúvida, mas ao menos já tomou uma decisão: vai se vestir com mais modéstia, entrar na fila e experimentar a convivência daquele centro.
Está curioso para ver se esta terapia coletiva funciona para ele também.

Caros Poetas


O que podemos esperar? Bem sei que muitas sociedades e cidades passaram por essa violência e banditismo político e, certamente, muitas outras passarão. A Chicago dos anos 30, NY dos setenta, para não falar do Velho Oeste (lá deles) e o nosso Velho Norte, a Inglaterra de Francis Drake e por aí vai.
Se olharmos um pouco mais de cima, no entanto, veremos que todos os indicadores de qualidade de vida melhoraram ao redor do mundo nos últimos cem anos. É fato. Até os países mais miseráveis da África melhoraram seus indicadores de expectativa de vida e de mortes por mil nascimentos. Também esse estado de coisas há de passar por aqui. Sabemos que notícia, quase sempre, é notícia ruim. E isso nos assusta; introduz um viés no nosso olhar. Mas a intensa atividade vital das cidades e do país continua todo o tempo. A sociedade pensa em si mesma continuamente através de seus milhões de habitantes. Cada um contribuindo com seu pouquinho no seu cotidiano. O que falta é massa crítica para uma mudança visível na forma de cobrança de direitos através da organização da população. Mas ela virá. O Bolsa-Família do atual presidente é o equivalente ao Plano Real de seu antecessor. As pessoas votam com os estômagos e com os bolsos. Corrupção sempre houve, em todos os governos, e a população sabe disso instintivamente, pois convive com ela e dela participa, porque senão não toca a vida pra frente. Então se acomodam e aceitam. 'Faz parte', ouve-se por aí. Mas as pessoas trabalham, estudam, têm valores, ambições e desejos que são irrealizáveis na atual condição da sociedade brasileira. No fundo não concordam com a corrupção e, quando tiverem o tempo, a educação e informação de boa qualidade (e vão acabar tendo, pois por isso já brigam), vão se mover para acabar com ela, colocá-la dentro de limites mais civilizados. Por isso as cidades e o país vão mudar, tenham certeza. Aos poucos, infelizmente, mas é assim com tudo na vida: um 'cadinho' por dia. Cabe a cada um de nós, no mínimo, comportarmos-nos como achamos que todos deveriam se comportar idealmente. Só isso já é muito difícil, mas por aí também começa alguma mudança. Sei que é a estória de que se cada chinês varresse a porta de sua casa, a China seria um país limpo. Mas é verdade. Além disso, e enquanto isso, a sociedade e seus milhões de anônimos se movimentam incessantemente.
Eppur si muove, caros poetas, eppur si muove, e o país é bem maior do que o presidente, os políticos, os corruptos todos e seus eventuais sucessores.
Eles passarão e o Brasil não.
As mudanças visíveis são epidérmicas, meus caros poetas, e a história é subcutânea.

25/01/2008

Ivrit


Há alguns anos, quando passava pelo viaduto da Avenida Dr. Arnaldo, via uma construção sendo erguida na primeira esquina da Rua Oscar Freire.
Aos poucos fui distinguindo a forma do enorme e improvável edifício:
Estava sendo feito na forma de um rolo da Torá sendo desenrolada.
Assim que ficou pronto e, evidentemente inaugurado, resolvi visitá-lo.
Era o Centro de Cultura Judaica.
Descobri que entre suas inúmeras atividades – palestras, exposições, coral, filmes e peças – também tinha um curso de Hebraico. E o que é melhor, a preços bem convidativos.
Não hesitei. Matriculei-me imediatamente para ter três aulas por semana pelas manhãs.
Excelente!
Gosto muito de línguas e de culturas de outros povos. Mas esta me desperta uma curiosidade a mais, pois a cultura judaica está na base da minha formação e cultura cristã.
Bem. Aprender uma língua, já per si, não é empreitada fácil e muito menos de curta duração. Considerando que o hebraico além de usar outro alfabeto, é escrito da direita para a esquerda, ficou-me evidente que a tarefa não iria ser das mais simples.
Ani lamed Ivrit. “Eu aprendo hebraico”, em caracteres ocidentais.
Mas não contava com a didática impecável dos mestres e a dedicação dos meus companheiros de sala. Há os caracteres que equivalem às nossas consoantes e pontinhos estrategicamente colocados para representar as vogais. Além disso, é uma língua (aramaico modernizado, quero crer) que foi planejada para ser o mais regular possível.
E assim, por muitas semanas, fui dedicadamente às minhas aulas de hebraico.
Não só sentia que estava aprendendo, como até pude escolher um nome hebraico para mim (Guy) e à cada aula, aprendia uma forma verbal nova, adquiria vocabulário novo e, logo, consegui formar novas sentenças, simples, mas novas o suficiente para sentir vontade de usá-las.
Além disso, o lugar oferece uma grande variedade de atividades culturais e interessantes, contemplando os múltiplos aspectos desta cultura milenar.
Então, como eu dizia, comecei a aprender hebraico e estava gostando do curso.
Mas aí aconteceu uma coisa, para mim, completamente surpreendente:
A partir de certo momento, o ensino deixou de incluir os tais pontinhos que indicavam as vogais?!?
O argumento didático que foi dado é perfeitamente razoável, eles ocorrem em lugares tão específicos que é possível, e até desejável retirá-los, pela simplicidade que introduzem na leitura e na escrita.
Mas eu, teimosamente, na minha rabugice de coroa, não pude deixar de achar que isso era, além dos argumentos apresentados, uma forma de humor judaico. Pra cima de nós, pobres Góis, é claro.
Naturalmente que não foi por esta razão que parei com as aulas, infelizmente alguns acontecimentos cotidianos impuseram-me limites e achei que uma interrupção era inevitável naquele momento.
Devo (e quero voltar) a aprender hebraico logo mais.
Entre outras coisas pelo humor que vislumbro na língua.
Faz parte, bem sei.
Afinal, quem me mandou ser Gói.

20/01/2008

Cruzamento


Eu e as esquinas.
Estava passando por uma aqui o meu bairro, quando me dei conta da cena:
Uma senhora, já de certa idade, meio gorda, subia a rua em direção à faixa de pedestres no cruzamento. Parei para assistir o desenrolar da história.
Esse cruzamento em especial está naquela fase pré-semáforo. Explico. Já tem faixas de pedestres nas quatro travessias possíveis e já é difícil de distinguir qual das duas ruas, ambas de mão única, é a preferencial. Sendo assim, a maioria dos carros diminui a velocidade antes de passar por ele, embora o trânsito seja intenso.
Mas voltemos à senhora.
Ela chegou à faixa e principiou a atravessá-la com imensa dificuldade de locomoção. Usava uma bengala e movia-se bem devagar.
Nisto, dois alegres cachorros, ambos jovens, com coleira e bem tratados, começara a atravessar a rua na direção inversa a da senhora e, claro sem respeitar completamente a faixa. Atravessaram na diagonal.
Pois bem.
A senhora parou de repente e ficou nitidamente preocupada que algo pudesse acontecer aos cães. Parou e os observou atravessar até que estivessem seguros do outro lado. O mais surpreendente para mim foi que ela evidentemente não se preocupou consigo. Apenas parou e observou. Não olhou para ver se vinha carro rua abaixo em sua direção ou se alguém iria virar a esquina de repente.
Depois continuou, laboriosamente, sua caminhada. Eventualmente chegou a um carro e, vagarosamente, nele entrou. Primeiro colocou a bengala no banco detrás, apoiou-se na porta e no banco para conseguir sentar-se e, finalmente, botou as pernas para dentro. Minutos inteiros se passaram até que ligasse o carro e começasse a manobrar para sair da vaga.
Ela manobrava o carro como se nunca a houvessem ensinado a sair de uma vaga entre dois veículos antes. Isto é, virava as rodas em direção à rua, avançava até praticamente tocar no carro da frente, virava a direção completamente para o outro lado e aí, ao invés de dar ré, como seria lógico, não fazia nada. Esperava um pouquinho, virava a direção completamente de novo e só então dava ré.
Olhei a manobra com curiosidade, pois imaginei que daquele jeito não sairia nunca da vaga, pois só ia para frente e para trás sem mudar a posição inicial do carro.
Engano meu.
Depois de incontáveis manobras destas, finalmente, acredite, o carro saiu da vaga. E assim que saiu foi-se embora dirigindo lampeira, com uma destreza na direção completamente oposta a sua dificuldade em andar.
O cuidado com a segurança dos cachorros versus o descuido com si mesma. A extrema dificuldade de locomoção pedestre e a baliza ilógica versus a habilidade e desembaraço na direção.
Para mim o ser humano é sempre uma surpresa.
É só uma questão de prestar atenção.

O Patriarca da Praça


Conheço a Praça do Patriarca desde menino.
Meu pai, durante uma época, teve escritório em um edifício imponente defronte a ela e não era incomum ir visitá-lo quando ia para a “cidade”, como se dizia então.
A praça ficou na minha memória por dois motivos bem diferentes:
Um é que o pai de um amigo de escola, o Peter Tuch, tinha uma loja tradicional ali: a Casa Cisne.
O outro porque houve um grande assalto a um banco lá localizado. A primeira vez que li um jornal de fio a pavio foi a edição com a história do assalto ao Banco Moreira Salles. Acompanhei fascinado o desenrolar das investigações nos dias seguintes. Eu, naturalmente, levava umas boas duas horas para ler o jornal, isso sendo que provavelmente pulava seções que nada me diziam. Mas foi desta ocasião em diante que adquiri o hábito de ler jornal.
No fim, haviam sido uns gregos, se não me falha a memória, que tinham cometido o assalto e escondido o produto em tonéis.
Enfim, esta convivência com a praça me deu vontade de saber melhor quem era o tal do Patriarca que a nomeava com direito a estátua e tudo.
O chamado “Patriarca da Independência” José Bonifácio de Andrada e Silva nasceu em Santos e morreu em Niterói.
Foi figura central da Independência do Brasil. Graduado pela Universidade de Coimbra em 1787, assistiu a Revolução Francesa em primeira mão, pois estava na França em 1790, no seu princípio. Era um naturalista, poeta e maçom. Interessava-se por assuntos que tivessem alguma utilidade. Passou 40 dos seus 75 anos fora do Brasil. Foi banido e exilado. Foi o primeiro brasileiro a ser Ministro do Reino. Organizou a ação militar contra a resistência a separação de Portugal. Foi tutor de D. Pedro II. Foi defensor dos índios e abolicionista. Era um admirador de Rousseau. Das três cartas que D. Pedro recebeu às margens do Ipiranga, Uma, das Cortes, diminuía seus poderes. As duas outras, de José Bonifácio e da Princesa Leopoldina, o instavam a desobedecer as Cortes de Portugal. Foi autor de inúmeros livros e era muito habilidoso com as palavras. Abaixo exemplos das suas famosas “Bonifrases”, como ficaram conhecidas algumas de suas opiniões:

- “Nas antigas monarquias absolutas da Europa há os contrapesos da força da civilização e da força dos costumes e da moral pública – mas que há no Brasil? Nada disto”.

- “De quem não sabe amar ou aborrecer, ninguém tem que esperar ou temer”.

- “A razão porque nunca farei fortuna em Portugal é porque não sei digerir afrontas, e sofrer revezes injustos a sangue-frio”.

- “Os políticos da moda querem que o Brasil se torne Inglaterra ou França; eu quisera que ele não perdesse nunca seus usos e costumes simples e naturais e antes retrogradasse que se corrompesse”.

- “Se não me foi possível dar a última mão de estuque ao magnífico salão nacional, ao menos embocei a parede”.

- “No Brasil a virtude, quando existe, é heróica, porque tem que lutar com a opinião e o governo”.

A Praça mudou muito desde a minha meninice, não mais existe ali a Casa Cisne e nem o Banco Moreira Sales existe mais com esse nome.
A estátua, nem sei mais se ainda está por lá.
Já o Patriarca, como se vê pelas suas frases, continua bem atual.

Blogosfeira


Tenho ido, quase todas as manhãs, a blogosfeira.
Assim que recém-chegada a manhã, parto em busca do que está dando sopa, em termos de cultura e entretenimento, na produção humana, em blogs, sítios genéricos, sítios de vídeo e de poesia, de literatura e pintura e nem sei mais o que. Do bem-feito ao bem-sacado, na minha modesta opinião, é claro, nas mil performances artísticas possíveis de serem acessadas e curtidas no vasto mundo da informação disponível hoje em dia.
Vivemos em um mundo ‘Koyaanisqatsi’, se é que me entendem, tudo em velocidade alucinante, novas tecnologias pipocando aqui e ali, quase que diariamente.
Além disto, de uns tempos para cá, a mídia, mais uma vez, se tocou que podia cevar no medo e pânico ancestral que temos do fim do mundo. Agora é o aquecimento global, a ameaça atômica dos anos 00. Para não falar neste 00 aí que, para alguns, já é apavorante em si mesmo.Há um receio de extinção no ar.
Isto está em toda parte, muito embora o mundo já tenha acabado diversas vezes ao longo da história, como bem retrata Otto Friedrich em seu “Fim do Mundo”, publicado no Brasil pela Record - 2001, 476 páginas. Do saque de Roma a Auschwitz, da Santa Inquisição ao terremoto de Lisboa.
Quando é chegada a hora e a vez de enfrentar a própria loucura, sempre parece ser a última.
Percebe-se – talvez até incentivada pelo estresse vigente – uma ansiedade, uma inquietação nos olhares, nos gestos nervosos e nos inconscientes das pessoas.
No entanto, é a primeira vez na história que está disponível, ao alcance das mãos, literalmente, tal quantidade de informação.
Cinqüenta séculos de cultura na ponta dos seus dedos.
Mas, de volta à prosaica blogosfeira. A dificuldade é encontrar a informação, saber quais perguntas fazer, ou como na piada:
‘Se o amor é a resposta, qual diabos é a pergunta?’
É preciso equipar-se com uma espécie de ‘detector de bobagens’, mas este é um equipamento que se obtém a custa de muita leitura, de muita passagem por material ruim, principalmente.
Mas, arrogante que sou, me aventuro à caça de tesouros no que chamo de blogosfeira. E, como em toda feira, nem tudo são achados, há muita xepa. Mas quando os encontro, quando considero que é do interesse dos que acessam meu blog, embora não saiba exatamente quem são essas pessoas, os posto.
Assim vou construindo, também, uma história pessoal, um registro dos muitos belos e dos muitos veros que encontro pelo caminho.

12/01/2008

Outras Casas


Gosto de casas.
Quando eu era menino, havia mães de amigos ou de conhecidos que eram tão obcecadas com limpeza, que nos obrigavam a tirar os sapatos e andar deslizando sobre recortes de tapete, para não arranhar o parquete, o assoalho, como se diz hoje em dia. Algumas chegavam ao paroxismo de cobrir os sofás e poltronas com plástico, para que não estragassem. Conheci também fanáticos que faziam o mesmo com bancos de carros. Lembro de sentir que havia uma inversão aí: as pessoas é que se adaptavam às coisas e não o contrário, como seria natural.
Prefiro casas gastas pelo uso.
Não me incomodam as paredes descascando aqui e ali, as manchas levemente escuras produzidas pelo calor das lâmpadas nas paredes e nos tetos. Até gosto. É sinal de casa habitada por gente há muito. Com histórias acontecidas entre os acenderes e os apagares dos dias e das luzes.
Sofás puídos, marcas de brasa de cigarro ali e acolá, poltronas destruídas por unhas de gatos ou mordidas de cachorros, tapetes manchados, marcas de copos em mesas – tudo ligeiramente disfarçado, decorado melhor dizendo, com um quadro, uma colcha, um porta-copo, uma tapeçaria, ou o que quer que seja. Gosto até de torneira que pinga (politicamente incorreto, bem sei), e marcas em batentes indicando o progresso do crescimento das crianças. Livros e discos empilhados fora do lugar. Jornais lidos. Tudo isso dá vida. Mostra que há moradores, que a vida transcorre com seus mil pequenos desastres seguidos de suas pequenas e cotidianas imprecações. Afinal, as coisas são feitas para serem usadas.
Compro coisas usadas com muita freqüência. Na verdade, quase que só. Mobílias, roupas, coisas de cozinha, objetos que acho curiosos, como uma bengala espanhola ou um telefone militar, por exemplo, comprei ao longo dos anos. Procuro sempre pelo que me diz alguma coisa, que se relacione com alguma parte de mim ou que ache particularmente belo ou interessante.
Carro novo, que me lembre, comprei pela última vez em 1976. Assim mesmo porque meu pai estava por trás da história. Acho bobagem comprar carro zero. Um semi-novo, vá lá, tem-se que procurar, levar a mecânico e funileiro para avaliar o estado, discutir preço e tal, mas podem ser, e freqüentemente são, ótimos. Com 10 ou 20 mil quilômetros; além de mais baratos já vêm amaciados.
Mas, de volta às casas.
Sabem essas casas modernas, construídas e decoradas por medalhões, com tudo no seu lugar perfeito, simétricas, bem planejadas, nada destoando? Não parecem casas de vitrine? Estáticas como fotos. Para mim é essa a impressão que passam. São de vários estilos, é claro, e existem até aquelas que são decoradas propositadamente, como se os objetos, móveis, tapeçarias tivessem sido escolhidos pelos donos ao longo da vida.
Mas logo, o que é falso se revela.
Pelo modo como as coisas se comportam. Em casas habitadas, as coisas migram. Mais ou menos, conforme o gosto do dono, mas migram. Naquelas outras nada migra. Nada troca de lugar. Os quadros são medidos cuidadosamente para as paredes onde provavelmente vão morar para sempre. Têm de combinar com os móveis, com o ambiente programado e por aí vai. São casas opacas e não têm histórias. Nada de aconchego, de passagem humana por lá. Não sei vocês, mas a mim não deixam à vontade, esta a verdade.
Jardins também podem ser planejados hoje em dia. Não mais aquele jardineiro da vizinhança, seu Fulano, que ia combinando as plantas de acordo com a disponibilidade e o gosto do freguês. E que, de tanto em tanto tempo, virava um mato só e era preciso esperar seu Fulano passar para dar um jeito, isso se coubesse no orçamento do mês.
Gosto de freqüentar e morar em casas assim, cheias dos disfarces, das histórias, dos objetos migrantes. Quadros, por exemplo, quando migram, são incríveis. Dão uma nova perspectiva a qualquer lugar. Instituem novos ângulos, novas vistas, novas belezas na vida de todo o dia.
Afinal vivemos em um mundo bem usado, e muito.
Existem lugares na minha cidade hoje em dia, que só reconheço por uma velha grade de bueiro, por paredes velhas descascando, ou por uma casa de gente antiga, que ou não liga mais para estas coisas, ou então não tem energia ou dinheiro para mexer nelas. Fazem-me bem. Saber que são usadas há muito tempo, que muitos passaram por ali. Gosto de lugares assim, com o chão gasto pelos passos, poltronas afundadas por horas de leitura agradável e quadros itinerantes.
Também eu pertenço ao universo dos usados. A casa da minha alma, meu corpo, traz as marcas e os arranhões da vida escritos em seu assoalho, mostrando, ao menos para mim, a minha vida que passou e vai passar. Bem mal usada, por vezes, esta casa que sou. Mas bem usada também, pois que já viu muita festa, já teve muitos visitantes e, embora sempre a pedir reparos como qualquer casa antiga que se preze, é organizada e agradavelmente usada naquilo que realmente importa.
Como disse, tenho preferëncia por casas usadas.

02/01/2008

Uma Casa de Amigos


Quando se fala em casa de amigos, pensa-se logo nos lugares onde se freqüenta para um drinque, um jantar ou um bate-papo. Mas não é dessas que quero falar.
Quando recebi uns caraminguás de uma herança uns anos atrás, comprei uma pequena casa na Pompéia, tradicional bairro de São Paulo. Estava precisando urgente de uma reforma. Pus mãos à obra. Depois de muitos meses, com a reforma afinal terminada, me dei conta de que muitas das coisas que foram feitas, foram feitas por sugestão e com a contribuição de amigos.
O mais importante é o Paulo Rabaça, uma pessoa que conheci como locador da casa onde morava antes. Ele checou a estrutura, engenheiro que é, pediu ao Giba que se esmerasse no janelão da frente, providenciou o forro de Angelim, os armários do quarto e da cozinha, minha mesa de trabalho, a estante de livros, tudo feito na sua bem azeitada marcenaria. Isso sem contar o sem número de excelentes profissionais de primeira linha que recomendou. Ele é uma pessoa singular e das mais generosas que conheci. Ajuda muitas pessoas no bairro, umas que merecem e outras que nem tanto, mas mesmo assim estende a mão sem deixar que a esquerda saiba o que faz a direita, como manda a Bíblia. Uma vez até, me deu de presente parte de uma pequena pizzaria no Alto da Lapa, mas essa história depois eu conto.
A frente recuada para dar lugar a uma porta lateral foi idéia do Stefano Ferretti, um diretor de arte com uma magnífica noção de espaço. Deu charme à frente da casa. A colocação de floreiras ao lado da caixa d’água, de modo que cobrissem a torre de vegetação foi idéia do Salum. Já o recorte de tijolo aparente na sala foi idéia do meu filho, inspirado por uma parede de uma casa no interior. A combinação de cores é sugestão do Thomas Brixa, amigo assíduo e leal e, na minha opinião, o melhor restaurador de arte da cidade. A grade de ferro que protege a torre da caixa d’água foi obra do Orlando, um ex-motoboy da pizzaria agora transformado em dono de uma pequena serralheria.O terraço atrás da casa, o famoso “puxadinho”, já que o lado português fala alto em minh'alma, não só dá vista para um lindo jardim no meio do quarteirão como também me dá de presente o pôr-do-sol. Este foi idéia do Maurício, um ator e poeta, vizinho de parede, amigo novo que veio junto com a casa e que tristemente se foi há poucos anos.Muitas das obras de arte na casa são trabalhos ou presentes de amigos: Stefano Ferretti, Roberto Aguilar, Rubens Mattuck, Elifas Andreato (amigo de minha mãe, na verdade), Sebastião Maria, Thomas Brixa, John Howard, Roberto Campadelo, Carlos Takaoka e Bete Beleza, entre tantos outros.
E os que fizeram a reforma de fato: Toninho, Alemão, Adilson, Reny e Gilmar, todos deram idéias e contribuíram com seu trabalho e sua disposição para a casa ser o que é.
Sei dizer que esta é uma casa que começou com o pé direito, com a amizade e o bom humor como parte da mistura, junto com o cimento, a areia e a água. Ao andar por ela vejo em cada pedaço um pouco da mão e do tempo de cada um. Uma construção quase sempre transcende nossa própria época e, às vezes, sinto a tentação de sonhar com o que vai passar dentro dela, entre essas paredes, os amigos que vão respirar e conviver nesses espaços, perambular por esses cantos. Mas é também, confesso, um amor recente e ainda em fase de namoro. Surpreendo-me com seus barulhos e seus ângulos de luz, suas correntes de vento e seus humores, com o nascer do dia e com o anoitecer. Ainda estou aprendendo a andar por ela à noite sem acender a luz. Essa minha casa preciosa foi e será feita de muita coisa, além de pedra e de cal. Foi e será feita de suor, alegria, trabalho, amizades, vida e gratidão. Nada é mais sólido do que isso.É e será, como uma moradia deve ser, uma casa de amigos.