15/02/2008

Minialetos


Sempre fui irresistivelmente atraído pelas palavras bem urdidas, e pelas diversas formas que seu encadeamento pode tomar dentro de uma mesma língua. Mais, dentro de uma mesma cidade, e digo, até dentro de um mesmo espaço físico.
São como dialetos para mim. Minialetos talvez fosse um bom nome.
Vou começar com um exemplo.
Peguemos a frase:
“Os homens não entendem as mulheres”.
Para uma pessoa de pouca instrução, em um boteco, digamos, poderia ser expressa como um suposto dito nordestino:
“Nem o diabo entende mulher, se entendesse não teria chifre”.
Para uma pessoa de instrução média, em um barzinho da Vila Madalena, vá lá, poderia ser dita como um clichê:
“Os homens são PC e as mulheres são Mac.”, parodiando o título de um famoso livro sobre o assunto.
Já para uma pessoa de nível universitário, freqüentador da Casa do Saber, poderia ser assim:
“Homens e mulheres, devido a diferenças que vão desde a anatomia até a genética, desde os meios culturais em que foram criados até o papel social designado a cada um por séculos de costumes, podem ter diferenças que, em alguns assuntos, os tornam incompreensíveis uns para outros.”
Há um inegável machismo na primeira frase, uma inversão na segunda (para aqueles que sabem que Mac é melhor que PC, naturalmente), e uma terceira frase em cima do muro. Tucanês, diria o José Simão. Mas o machismo visível na primeira frase pode ser visto mais como uma forma de humor cru; a inversão da segunda como politicamente correta e a terceira, bem a terceira não cheira nem fede, é claro, além de ser a mais longa das três.
Mas são apenas exemplos do que chamei de minialetos.
Com alguma atenção e treino é possível apreender, até com alguma facilidade, a se expressar em cada um deles por conversas inteiras. É como aprender outra língua, só que muito mais fácil.
A vantagem deste aprendizado é a melhora da comunicação com as pessoas independente de sua origem, instrução ou condição social.
Afora que é uma delícia para quem gosta de palavras como eu.
Mas, em cidades grandes como São Paulo ou Rio, além dessas variáveis educacionais e socioeconômicas, existem também as variáveis de cultura local. Palavras que são de uso corrente em um bairro e praticamente desconhecidas em outro, ou então familiares para uma ‘tribo’ e com sentido totalmente diverso em outra.
Vejam bem, não estou nem falando de jargões profissionais, que também estas linguagens podem ser incompreensíveis para pessoas de fora do ramo específico de atuação a que se referem.
Estou falando de linguagens pedestres, cotidianas.
De certa forma, o talento para falar de modos diferentes já está embutido em todos nós.
Por exemplo, sabemos perfeitamente quando usar ou não palavrões, quando é para sermos mais ou menos formais; sabemos que o não permitido à mesa é perfeitamente aceitável em uma roda de amigos, e por aí vai.
Então me parece que é apenas uma questão de tornar essa habilidade natural da cultura – pois que perpassa todos os segmentos sociais e econômicos – mais abrangente e inclusiva, até para melhor curtir a cidade e seus diversos sabores lingüísticos e culturais.
Menas..., dirão alguns.
Mas por que não, catsu?..., digo eu.

03/02/2008

Fila Indiana


Era seu caminho.
Parava o carro na zona azul na primeira travessa depois do edifício para onde se dirigia.
Comprava os talões na banca de jornal na esquina seguinte e até já tinha estabelecido uma camaradagem com o rapaz da banca, o suficiente para uns dedos de prosa caso chegasse adiantado.
Passava pelas lojas da rua, pelo bar da esquina e descia fumando um último cigarro já que fumar não era bem visto pela sua analista.
Pois é. Era para sua sessão de psicanálise que se dirigia.
Depois da identificação pela câmera da portaria, subia até o sétimo andar, tocava a campainha e entrava.
Seu horário era às nove horas da manhã.
Um belo dia – gostava desse clichê em especial por dois motivos: um que um seu professor de natação sempre lhe dizia que “todo dia é bom dia, certo?”, e porque tinha uma empregada para quem todo dia era de fato um belo dia.
Mas como eu ia dizendo: Um belo dia, por circunstâncias de agenda, teve seu horário antecipado para as oito horas da manhã.
É importante contar o motivo pelo qual fazia análise: Ele era um dependente químico. E de várias substâncias químicas: tabaco, álcool, maconha, café e umas tantas outras menos populares.
Acontece que ao chegar para sua sessão das oito horas, deparou-se com um cordão de pessoas serpenteando pela calçada da avenida da esquina para baixo.
As pessoas estavam em fila indiana rente às paredes, umas de pé, outras sentadas no chão ou num degrau, outras ainda, deitadas dormindo.
Todos sérios, quietos e diferentes entre si. Aquele retrato conhecido da pobreza urbana brasileira: maltrapilhos ou de short e sandália, um ou outro travesti sem produção, muitos alcoólatras inchados. Idade média ao redor dos quarenta anos.
Ficou curioso, mas de imediato não viu nenhum motivo visível para aquilo, provavelmente porque estava em cima da hora e não teve tempo para investigar.
Na saída, uma surpresa: não havia mais fila e nem mais ninguém a vista. Onde teriam ido? Seguiu avenida acima olhando para as casas até descobrir a resposta em uma pequena porta com uma plaquinha da prefeitura identificando o lugar: Centro de Convivência.
Não resistiu, é claro, e entrou. Era um lugar que servia café da manhã – um copo de café com leite e um pãozinho francês com margarina – tinha os jornais do dia (vários exemplares), uma televisão pendurada na parede com os programas matinais e algumas mesas onde se jogava dominó.
Lá dentro as pessoas conversavam, sem falar muito alto nem nada. O ambiente poderia até ser descrito como normal, não fosse uma ou outra pessoa isolada num canto murmurando consigo mesma.
Nele, sequer repararam, embora estive bem melhor trajado do que todos ali.
Um olhar daqui e dali e mais nada.
Deu uma volta pelo lugar e saiu dali pensativo.
Qual das duas seria a melhor solução para pessoas com problemas: a sua sessão de análise de alfaiate, cara, sofisticada, feita sob medida que freqüentava, ou aquela experiência comunal, sendo igual entre iguais, trocando idéias, comparando os problemas e as soluções que cada um encontrava para seus males?
Antes de pegar seu carro na transversal, parou no bar e pediu uma bebida.
O dono do bar, um português cauteloso, pediu-lhe delicadamente que fosse discreto e bebesse mais para o fundo do estabelecimento, pois não queria servir a ‘esses gajos aí, que só fazem dar problemas’.
Ele ainda não achou uma resposta satisfatória para sua dúvida, mas ao menos já tomou uma decisão: vai se vestir com mais modéstia, entrar na fila e experimentar a convivência daquele centro.
Está curioso para ver se esta terapia coletiva funciona para ele também.

Caros Poetas


O que podemos esperar? Bem sei que muitas sociedades e cidades passaram por essa violência e banditismo político e, certamente, muitas outras passarão. A Chicago dos anos 30, NY dos setenta, para não falar do Velho Oeste (lá deles) e o nosso Velho Norte, a Inglaterra de Francis Drake e por aí vai.
Se olharmos um pouco mais de cima, no entanto, veremos que todos os indicadores de qualidade de vida melhoraram ao redor do mundo nos últimos cem anos. É fato. Até os países mais miseráveis da África melhoraram seus indicadores de expectativa de vida e de mortes por mil nascimentos. Também esse estado de coisas há de passar por aqui. Sabemos que notícia, quase sempre, é notícia ruim. E isso nos assusta; introduz um viés no nosso olhar. Mas a intensa atividade vital das cidades e do país continua todo o tempo. A sociedade pensa em si mesma continuamente através de seus milhões de habitantes. Cada um contribuindo com seu pouquinho no seu cotidiano. O que falta é massa crítica para uma mudança visível na forma de cobrança de direitos através da organização da população. Mas ela virá. O Bolsa-Família do atual presidente é o equivalente ao Plano Real de seu antecessor. As pessoas votam com os estômagos e com os bolsos. Corrupção sempre houve, em todos os governos, e a população sabe disso instintivamente, pois convive com ela e dela participa, porque senão não toca a vida pra frente. Então se acomodam e aceitam. 'Faz parte', ouve-se por aí. Mas as pessoas trabalham, estudam, têm valores, ambições e desejos que são irrealizáveis na atual condição da sociedade brasileira. No fundo não concordam com a corrupção e, quando tiverem o tempo, a educação e informação de boa qualidade (e vão acabar tendo, pois por isso já brigam), vão se mover para acabar com ela, colocá-la dentro de limites mais civilizados. Por isso as cidades e o país vão mudar, tenham certeza. Aos poucos, infelizmente, mas é assim com tudo na vida: um 'cadinho' por dia. Cabe a cada um de nós, no mínimo, comportarmos-nos como achamos que todos deveriam se comportar idealmente. Só isso já é muito difícil, mas por aí também começa alguma mudança. Sei que é a estória de que se cada chinês varresse a porta de sua casa, a China seria um país limpo. Mas é verdade. Além disso, e enquanto isso, a sociedade e seus milhões de anônimos se movimentam incessantemente.
Eppur si muove, caros poetas, eppur si muove, e o país é bem maior do que o presidente, os políticos, os corruptos todos e seus eventuais sucessores.
Eles passarão e o Brasil não.
As mudanças visíveis são epidérmicas, meus caros poetas, e a história é subcutânea.