13/10/2009

Solvitur Ambulando


Primeiro dia, três mil. Segundo dia, três mil. Terceiro dia, quatro mil e quinhentos. Quarto dia, quatro mil e quinhentos. Quinto dia, quatro mil e quinhentos, duas numa direção e uma na outra. Sexto dia, quatro mil e quinhentos, duas noutra direção e uma numa.
Na inversão, olhos novos. Um parque diferente.
Sétimo dia, descanso.
Oitavo dia, preguiça. Mesmo assim três mil, alongamento das batatas da perna e da frente das coxas. Braços também, para não esquecer como faz.
Nono dia, três mil, mesmos alongamentos, mas mil correndo e dois mil andando.
Décimo dia, mesma coisa, mas mil e quinhentos numa direção e mil e quinhentos noutra.
Um casal alimentando galos, galinhas, gatos e patos. Chamando a cada um pelo primeiro nome.
‘Branco’, um galo. ‘Chiráu’, um gato, para ficar em dois.
Um olhar mais curioso para os freqüentadores, numa direção e noutra.
Décimo - primeiro dia, esta crônica.
Solvitur ambulando.
As coisas se resolvem andando.
Já parece haver amanhã.

24/07/2009

Reflexões


Tudo é passageiro, menos o cobrador e o motorneiro. Ditado do meu tempo de criança, quando ainda havia bondes em São Paulo.
Perde-se a juventude e o viço, perdem-se amigos, perde-se a saúde, perde-se dinheiro, perde-se tempo, perdem-se as memórias e alguns a própria memória de si e, ao fim de tantas e inumeráveis perdas, perde-se a própria vida.
Mas o assunto da vida são as perdas. Lidar com elas. Aceitá-las.
E a lembrança que eventualmente fica dura uma ou duas gerações e olhe lá. Pergunte a qualquer um se de seus oito bisavôs e bisavós sabe ao menos o primeiro nome. Poucos são os que lembram mais de dois ou três. Essa a nossa duração neste mundo e na memória da própria família, para não falar dos outros de fora do círculo das relações sanguíneas.
Tudo bem, a vida pertence aos vivos. Isso todos sabem.
Parece que ao longo da vida, quase sem perceber, vamos subindo uma colina e chegados ao topo, nos encontramos sozinhos, contemplando um passado feito de retalhos e pedaços de lembranças dispersas no tempo.
Guardiães de uma história que só a nós mesmos interessa. E ainda assim, não muito. Há um sentimento de distanciamento do que vivemos, fizemos e deixamos de fazer.
É importante, em não tendo sido supremos canalhas, é claro, ao menos não cultivar culpas. Além de inútil pode tornar mais sofrido o fim da jornada.
Quem me lê pode achar que estou velhinho e olhando para o passado. Longe disso. Não estou ainda no topo da colina. Apenas observo os que lá já estão e com quem convivo, e me preparo para quando chegar a minha vez.
Mas já é possível assistir ao processo das perdas. As inexoráveis e as que talvez fossem evitáveis. Não há como saber.
Desde o barbeiro que, inadvertidamente, mostra o corte e deixa-o vislumbrar a calva que avança no topo da cabeça, o famoso aeroporto de mosquito, os efeitos da gravidade, na bunda, que ficará como bochechas de camelo, no papo de peru, no nariz e nas orelhas que crescem com cada vez mais pelos; até as perdas mais doídas, daqueles a quem amamos.
Há também os tratamentos, como o ‘senhor’ e o inevitável ‘tio’ ou ‘tiozinho’, com que os jovens imortais nos brindam, como se sinal de respeito fossem.
Idade e experiência não contam em país de jovens. Que aqui não é o Japão ou a China. Estamos mais para os esquimós, que põem os velhos para fora do iglu, para que morram de frio e inanição. Depois de certa idade, não há emprego ou ocupação para os velhos, salvo trabalho voluntário ou jogar dominó na pracinha.
Faz pouco tempo conheci um senhor de oitenta anos, médico de profissão que ficou praticamente cego. Outro dia o vi na padaria, e fui sentar-me ao seu lado. Contou-me que pensava em se matar, que já tinha juntado os remédios próprios para uma morte sem sofrimento. Ponderei que o suicídio, embora esteja na reflexão de todos os seres humanos e possa ser um alívio, pode não sê-lo também, já que ninguém sabe o que nos aguarda do outro lado. Além disso, pune os que ficam deixando uma inevitável sensação de culpa nos que nos rodeiam. Ele virou o rosto para mim, não me vendo naturalmente, pôs a mão no bolso, tirou umas notas e pediu que dissesse a ele quais eram de que valor. Eu disse. Ele levantou-se, pagou e foi-se embora. Não o vi mais e estou preocupado com ele, embora não o conheça e não saiba onde mora. Ele que a tantos tratou e curou, não encontra propósito ou alívio para si mesmo.
Não estou velho ainda, propriamente, é verdade.
Mas minha alma já anda grisalha.

24/01/2009

O Dia Em Que O Rei David Desligou O Bar


Rei David.
Eu o chamo assim porque, à maneira de um bom rei, que tudo sabe do seu reino, o David conhece tudo e a todos neste bairro. Qualquer coisa que uma pessoa necessite, de um bom mecânico para um carro importado, passando por um excelente tapeceiro, até o pedreiro perfeito para fazer aquele conserto necessário na casa de alguém; para todos os problemas ele invariavelmente recomenda o profissional perfeito.
O bar que freqüentamos tem uma quota desproporcional de pessoas de personalidade, se comparado com outros bares de esquina. Apelidos todos têm. Nem todos dados por mim e nem todos adotados pelos demais, mas os adotei para meu consumo pessoal, para chamá-los de acordo com sua personalidade.
Há o Alair, que chamo de Alá, meu bom Alá, o acima mencionado Rei David, o Comandante Cleber, o Capitán, Master Berger, o Conde Frescobaldi, Sagüi e, até eu mesmo, às vezes chamado de Argentino, por conta de umas viagens ao país vizinho, ou de Frango de Macumba, apelido este dado pelo Sagüi e, este sim, adotado por todos. Quando querem me cutucar, é claro.
Há também aquele a quem ninguém ousa dar apelido: Seu Tavares. Este o sábio inconteste do lugar. Homem de refinada educação e vida mais do que rica e interessante, é escutado e reverenciado por todos. Por ser dono de vasta cultura e ponderado em todos os assuntos, é autoridade indiscutível.
Mas de volta ao nosso Rei David.
Estávamos todos a conversar em um prosaico fim de tarde, quando o Rei David entra, vai direto para a caixa de força e, sem nenhuma palavra, desliga a chave geral.
Surpresa. Cala a TV, apagam-se as luzes e desligam-se as geladeiras.
Impassível, ele, munido de suas ferramentas, que esse é um eletricista de primeira, dirige-se para a parte de dentro do balcão e começa a consertar o display que mantém aquecidas as coxinhas, esfihas e os outros acepipes a disposição dos fregueses. Todo o processo não durou, talvez, mais do que dez minutos. Uma vez resolvido o problema, como não poderia deixar de ser, voltou à caixa de força e religou o bar.
Ninguém deu um piu, pois o Rei David é destes que quando vê uma coisa que precisa ser feita ou consertada, não adia, vai, resolve e pronto.
Taí. Depois desse dia passei a prestar mais atenção no personagem. Além da excelência no que faz, e de conhecer e indicar todos os que são os melhores em seus campos de atuação, o Rei David entende de muitas coisas. Não é incomum vê-lo dar uma opinião abalizada sobre os mais diferentes assuntos. É um homem modesto que não se dá ares, mas é pessoa atenta, de bom coração, sempre solidária e de finíssima inteligência.
Como deveriam ser os reis.